Um dia antes da tragédia ocorrida em Santa Maria,
minha cidade natal, eu estava lá. Fui ver minha irmã Elis em sua apresentação
teatral, última obra sua para encerramento de seu curso de Artes Cênicas, na
UFSM*. Foi um espetáculo lindo, digno de
uma Beatriz de Chico Buarque**.
Fazia anos que não revia minha cidade. Sempre morei com
minha família em uma cidade de fronteira, longe dali, foi somente quando saí do
Ensino Médio, no ano 2000, que pude retornar a Santa Maria para estudar. Foi
ali que aprendi a lição mais valiosa de meu viver.
Os jovens que vão a Santa Maria pra estudar, como
brinde, ganham um “cursinho básico” para a vida. Você é jovem, tem pouca grana
(como eu e minha prima Nessa, na época que moramos juntas), pouca experiência,
costumes e manias ‘imutáveis’ de adolescente, questionamentos e dilemas que
beiram à adultez, vontade de correr atrás dos ideais reclusos na cidade pequena
de onde veio, cara e coragem pra lutar.
E então, desde o primeiro dia morando sozinho, você
começa a aprender. Primeiro, o choque doméstico. Você fica espantado como pode
a sua roupa toda de repente sumir! Não existe uma peça limpa! Você abre
automaticamente mil vezes o guarda-roupa esperando que elas se materializem
limpinhas, cheirando a amaciante Fofo, e então, quando a última toalha limpa
acaba: BUM! O que fazer? Parece muito simples: lavar à mão? Não é. Juntar
dinheiro pra comprar uma máquina de lavar? Entre comer e pagar o Cursinho...
Não é.
Estudante bom que se preze, emagrece uns cinco
quilinhos no primeiro ano fora de casa! Primeiro porque acha que Nissin Miojo
vai dar conta até o final da faculdade. Segundo porque acha que nunca vai ter uma
dor de barriga brutal em função do velho Xis da esquina requentado (e vai parar
no Pronto Socorro por conta disso). Terceiro porque às vezes ele tem que morar
em um pensionato esquisito, onde a dona não deixa ele usar o fogão (sim, isso
existe). E, adicionando um quarto elemento, os lugares que existem para os
Universitários comerem a um preço razoável, não tem uma comida tããão razoável
assim.
E também tem aquele maldito, chato e insuportável sono
de adolescente. Em virtude de que agora você deve cuidar de si próprio sem
direito a uma folguinha (e, se trabalha, ou estuda pra passar num vestibular de
Medicina, mais), é aqui que a coisa desanda. Porque agora você divide tarefas
com jovens como você, dentro da República onde mora, e hoje é seu dia de limpar
o banheiro. Porque hoje é seu dia de reunir a grana da galera e enfrentar a
fila do banco pra pagar as contas, antes que cortem a luz. Porque hoje, mesmo
com enxaqueca, é seu dia de conversar com o cara da imobiliária pra ele fazer
um conserto no apê. Não tem o dia da mamãe ou da vovó reconfortando o cochilo
despreocupado no sofá da sala. E você “cai duro” na cama, dormindo em meio ao
amuado pensamento, questionando se foi a melhor hora de sair de casa.
Então um dia você volta à sua cidade, como eu voltei.
E, andando de ônibus até a Cidade Universitária, você se lembra de tudo, e ao
invés de chorar, sorri. E agradece por ter vivido aquilo. Passa pela Avenida
Presidente Vargas relembrando o velho tênis que percorria a cidade atrás de uma
aula de Matemática melhor. Sonhava em que sobrasse uma graninha do apertado
orçamento estudantil pra poder comprar uma calça jeans legal, quando via a loja
bonita, na esquina do Calçadão. Ou talvez fosse melhor investir no rodízio de
pizzas, lá na Medianeira. Ou ir numa festinha ou barzinho, comemorar todos os
novos aprendizados da vida, incluindo aquela nota boa na última redação.
Não sei o que é mais injusto nesta hora. Ser pai e mãe
e compartir uma dor fulminante dessas, pensando em todos esses familiares e sua
perda inestimável, ou ser filha e filho, e pensar que nós vivemos como esses
filhos e filhas. Nós estivemos lá, em Santa Maria, durante anos, aprendendo,
realizando, tentando o nosso melhor. Nós acordamos no meio da noite, barriga
roncando e sonhos incompletos, tentando nosso melhor. Nós não desistimos,
apesar de tudo o que vivemos, porque nossos sonhos eram grandes demais para
permitir a derrota. Nós fomos como eles, e não permitimos a estagnação e a
desculpa furada de não poder fazer nada porque só podíamos fazer um pouco.*** Nós aprendemos.
Saí de Santa Maria no sábado à tarde, algumas horas antes
do incêndio na boate. Estive a viagem inteira pensando em tudo que vivi, ora me
emocionei, ora quis gargalhar. No dia seguinte, o fato horrível me acorda, e eu
agradeço por minha irmã e meus primos estarem bem. E foi só o que eu consegui
fazer.
Foi em Santa Maria que aprendi a lição mais valiosa de
minha vida, e tão antagônica a este momento. Nunca esquecerei. Eu aprendi a viver.
Luiza Versamore
Arte de Alpino
*UFSM: Universidade Federal de Santa
Maria
**Beatriz de Chico Buarque: confira aqui
***citação de Edmund Burke: “Ninguém comete erro maior do que não
fazer nada porque só pode fazer um pouco.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário