Fausto


Foi um tempo bem legal, o que passou. Mas já faz tempo mesmo, que pena. As coisas tomaram uma enorme distância do que eram naquela época. Não nasci pra esse tipo de ridicularização dos pensamentos, dos argumentos, embora vez ou outra me sinta tentada a inverter o que se passa em minha cabeça através das infanto-juvenis frases feitas das redes sociais. Mas é um segundo e passa essa vontade tosca de contestar bobagem. Prefiro pregar lá no meu mural algo útil, que preste realmente a alguém ou a alguma causa. Até mesmo uma poesia ou uma música, que tem muito mais serventia pra alma de quem lê. Fiquei pensando numa coisa que minha mãe me disse, que através do mural do Facebook todo mundo “É” perfeito.

Sabe, no meu tempo existiam várias tribos. Todas eram formadas de gente muito diferente, e olha que coisa incrível, tinham os que se achavam certos e estavam bem errados (acho que nunca se deram conta disto), e tinham os que se achavam erradíssimos e viram lógica pra tudo um tempo depois. Veja como a vida é, sempre ensinando que estática mesma, só a própria palavra, que sempre será uma proparoxítona e por si só continuará a levar acento na cabeça!

Bem, mas haviam várias tribos... E eu lembro bem dos certinhos, dos chatinhos que queriam mandar na turma, alguns com aquele perfil quase sociopata, que se candidatavam a presidente da turma (por sorte, minha escola era pública e a molecada não colocava “cdf” pra comandar nada). O que eu quero dizer é que, apesar de não ser a rainha das matérias, eu sempre fui bem estudiosa. Não só na escola, em todo o tempo de faculdade também. Eu sempre fui responsável, de trazer caderno de tarefa de casa feitinho, todos os dias. Sempre fiz questão de fazer meus próprios trabalhos, e o trabalho de mil colegas que levei “nas costas” e nunca fiquei azeda por isso. Tenho certeza que ganhei bastante conhecimento assim, quem sabe talvez meus colegas “encostados” tiveram que penar mais um pouco pra aprender o mesmo, sei lá. Sempre tive essa consciência de que o saber era bem na onda do Paulo Freire, que pensou assim- “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo.”

Conheci poucas, três pessoas, pra falar a verdade, do meu tempo de faculdade, que se mantiveram serenas frente a todo o saber que tinham. Não por acaso, foram os melhores alunos da faculdade. Eles não impuseram seus estudados e vigorosos conceitos a cada oportunidade de uma conversa informal. Só essas três pessoas, de muitas mais de cem, não fizeram o papelão de explicarem ou tentar explicar temas de medicina na tentativa de aparecerem ou se exibir para os colegas. Ou mesmo fazer com que o colega se sinta um pouco envergonhado por não ter aquele conhecimento arrasador, ui todo! Talvez isso exista em todas as profissões, não duvido de mais nada.

Resulta que em uma das tribos da sétima série vivia o Fausto, coleguinha desde a terceira, famoso por ser o melhor estudante da turma, e não só isso. Fausto nunca fora Faustinho. Fausto era exemplar. Nunca uma nota vermelha. Nunca uma chamada de atenção dos professores. Nunca uma falta grave, nem leve. Até que um dia, a vida nos uniu.

A nossa turma estava impossível e os professores resolveram destituir do cargo o presidente da turma que não estava fazendo nada pelo bem da classe. Nova votação. Ninguém queria assumir, pois, dali pra frente a banda ia ter que tocar direito. “-Quem se candidata?”- Fausto levanta a mão, com olhos radiantes. “-Tem que ter mais um candidato, senão fica o Fausto mesmo!”- Falou o professor doidinho pra que o Fausto ficasse. E era meu tempo da “zoação”, da “idiotagem”. Levantei a mão. Aplausos. O professor nem deu bola, mas as colegas adoraram.

Fiquei de vice do Fausto. E aí Paulo Freire se concretizou nas nossas vidas. Toda a brincadeira ficou de lado, e quando eu vi estava montando planilha de objetivos pra turma 71, cartazes com a missão da turma, pedindo silêncio pra aula prosseguir, colaborando com o professor para os colegas não serem zoados (o famoso bullying). Comecei a conviver com meu colega exemplar e, aos poucos, fui descobrindo que complexos desafios ele enfrentava em sua vida. A primeira problemática começou semanas depois, com os outros meninos tirando sarro do Fausto, pelo jeito um tanto delicado afeminado, que ele mostrava. Se ele pedisse silêncio não resolvia nada, imediatamente começava a zoação. Então eu levantava, com cara de má, e voz de gralha, e todo mundo se aquietava. Fausto fechava a cara, quieto. Às vezes, quando a “cutucada” era grande, contra-atacava xingando os homofóbicos juvenis da turma, de “burros”, na tentativa de que eles se ofendessem e provassem um pouco de sua dor.

Alguns meses se passaram e ele abriu o jogo comigo. Com mais confiança em nossa amizade, começou a relatar-me o que acontecia em casa. O pai rígido, que o obrigava a escrever um caderno inteirinho com o mandamento sagrado: EUNUNCAMAISIREITIRARNOTABAIXA. O trabalho de Office-boy (será que existe ainda essa profissão?), que ele fazia pra uma empresa imobiliária, e ia de bicicleta toda preta, cobrar os aluguéis pela cidade afora, pra poder ajudar a família. Um dia meu vô Ary me chama: “-Tem um colega teu aí fora, o rapazinho que cobra o aluguel.”

Talvez não tenha sido o dia de sua libertação, mas foi um desabafo pelo menos. Era meu colega rechonchudo, que vestia sempre a mesma camiseta preta (imagino que era a cor que ele elegeu como pra tentar esconder-se do mundo) para trabalhar, suado de tanto pedalar, usando como pretexto a próxima Gincana da escola que iria ocorrer na semana entrante. Convidei-o pra entrar, não quis:”-É que eu tenho que te falar... acho que vou desistir da presidência. Não aguento mais nossos colegas... dizendo que sou gay... Se eu fosse mesmo homossexual, o que eles teriam que ver com isso? Você não acha?”- olhos permissivos, medrosos, esperando um consolo.

Que conselho eu poderia dar (como se conselho fosse de graça*)? Até ali tudo o que eu fiz foi defendê-lo da turma, sem nunca encarar a questão diretamente com ele. Até ali, consegui manter nossas tribos em certa harmonia, dando um “para-te-quieto” aqui e ali, pros ânimos não se exaltarem. Até esse momento, menino era menino, e menina era menina, pois tive uma criação um tanto católica. Tirei as ideias de conflito por um instante da cabeça e falei, de coração sincero: “- O que importa é que você seja feliz como você é, e não comece a desistir das coisas por meia dúzia de babacas.”

Demorou uns dois anos mais, e Fausto conseguiu sair do armário aonde ele se escondia, todo escuro, onde seu mundo não tinha cor. Foi muito duro, claro. Teve que assumir uma vida velha, e fazer de conta que era nova. Teve que assumir que não contaria com a compreensão do pai, numa sociedade hipócrita como a nossa. Eu o reencontrei na calçada anos depois, saindo do banco. Consegui ver que estava feliz, quase radiante. O felicitei pela coragem.

Hoje vejo que o conceito de tribo que eu tinha, era mau, muito separatista. Que ele existe ainda, fora da adolescência, é inegável. Cdf’s, vagabundos, gays, heteros, infelizes, estudiosos, consumistas, arrogantes, divertidos, justos, injustos.

Ainda acho que os melhores são os que se assumem.

Luiza Versamore




*Ainda vou escrever sobre o tema “conselhos”, e vocês irão entender porque eu acredito que não é de graça.



-O nome verdadeiro de Fausto ficará resguardado.


  


Dindon


Ela não tem noção. Ela é só. Parecia uma comédia como tudo aconteceu, mas depois que passou eu fiquei pensando o quanto ela é triste.

Há uns dias atrás, depois de chegar de um dia cansado de trabalho, banho tomado e pijamas postos, fomos juntos à cozinha, eu e Rafa, preparar uma refeição. Parecia uma fala decorada de novela, parecia uma cena ensaiada muitas vezes, a gente ia ganhar o Emmy se alguém estivesse filmando. Enquanto montávamos um sanduíche, com uma fatia de queijo na mão, Rafa juntou todo o seu romantismo e propôs: “- Que legal que hoje a gente vai poder ver a novela na cama, nesse friozinho, esquentando os pés...”- dindooon- a campainha interrompe nossos planos. Um doce pra quem adivinhar quem era. Ela mesma: Gargamel. Pra quem não sabe de quem estou falando, por favor leia esse post aqui.

Lá foi Rafael atender a porta, e uma voz aflita ecoou no corredor inteiro: “-Posso assistir a novela com vocês?”- cortaram o cabo da velha. E lá vieram um milhão de explicações: “porque eu pago seis meses adiantado e eles fazem essa sacanagem comigo... porque nunca fiquei sem pagar... porque se eu perder esse capítulo... porque a Carminha vai descobrir que a Nina é a Rita...”- resultado: Gargamel sentada no sofá da sala. Fato que exigiu do Rafa mudança de planos: trazer a TV do quarto, colocar mais um par de meias, e tentar usar aquela psicologia de sala de espera do dentista (onde algo te incomoda e te constrange ao mesmo tempo). Porque sim, ela colocaria as “garrinhas de fora”.

Gargamel devidamente sentada, recusou-se a provar nosso lanche, sob pretexto de que só come comida azul- mentirinha- de que já havia jantado. Começa a novela. Na TV e na sala, ao vivo. Resulta que Gargamel desanda a falar, a comentar, a se revoltar contra as personagens, e começa a viajar no mundo do Projac, e fala tanto que uma hora eu e Rafa parecemos a audiência burra: só concordamos.

Foi uma longa refeição, eu que estou sempre brigando pro Rafa comer devagar, me surpreendi ao ver que eu havia terminado e ele seguia mastigando. Seria pra não falar, e continuar a concordar? Seria pra fazer tempo e não precisar sair da mesa e se unir a velha no sofá? Não posso julgá-lo, eu fiz o mesmo.

De repente, chegaram nossos salvadores. - Dindooon, outra vez. Nossos amigos-vizinhos-compadres. Um casal grávido. A conversa aconteceu, a cara fechada de Gargamel se abria em sorrisos de vez em quando, quando o “Jorginho” aparecia, a gente ria dos comentários dela, e ela também, a hora passava depressa, com mais gente quase conseguíamos inibir podar uma reação desarmônica da chatinha senhora. Mas veio o intervalo comercial, e com ele uma cadeia de espirros de Gargamel. –“Está gripada vizinha?”- E ela não só respondeu que sim, mas que associava esse estado gripal com um estado de depressão pelo qual estava passando. Não chegou a ser surpreendente porque Gargamel tem o perfil típico dos depressivos. Mas foi triste. A gente deu razão a ela, “claro que sim, a depressão pode baixar nossas defesas”- todo mundo concordando, todos nós tentando deixá-la mais confortável, naquela onda “ela é gente como a gente...”-não é não!

Pessoas como Gargamel não adotam a forma humana por muito tempo. Eu avisei que ela poria as garras de fora. Estávamos falando da felicidade dos nossos amigos em serem papais pela primeira vez, quando ela solta essa: “Isso é uma desgraça!”- sabe aquela hora em que todo mundo quer disfarçar, mas a cara fala? Daí ela emendou, com medo que a gente enforcasse ela: “-Mas é um presente de Deus, né...”- agora, me digam, o que fazer com essa velha? 

Nem ela se aguenta mais. Ela vai ser alvo fácil da gripe sempre. Ela vai ter que inventar um cabo cortado, no meio da noite gelada, muitas vezes mais. Ela casou, fez filhos, tem netos, todos beeeem longe... e não falo nem de distância física, porque até pra isso o Skipe dá um jeito. Eu falo da distância que as pessoas tomaram dela no campo dos sentimentos. Ela tem um prazersinho incrível de chocar com as opiniões, de enervar, de espirrar para os outros sentirem pena. 

Quando ela começou a ser assim? Quando ela pensou em afastar os demais pra viver na dependência psicológica de uma novela das nove? Quando ela achou que teria todo o tempo do mundo pra mudar e ser melhor, e ser querida, e ser amada, e não foi?

Não dá pena. Dá tristeza.


Luiza Versamore

*Obra: La Celestina de Pablo Picasso



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