Dindon


Ela não tem noção. Ela é só. Parecia uma comédia como tudo aconteceu, mas depois que passou eu fiquei pensando o quanto ela é triste.

Há uns dias atrás, depois de chegar de um dia cansado de trabalho, banho tomado e pijamas postos, fomos juntos à cozinha, eu e Rafa, preparar uma refeição. Parecia uma fala decorada de novela, parecia uma cena ensaiada muitas vezes, a gente ia ganhar o Emmy se alguém estivesse filmando. Enquanto montávamos um sanduíche, com uma fatia de queijo na mão, Rafa juntou todo o seu romantismo e propôs: “- Que legal que hoje a gente vai poder ver a novela na cama, nesse friozinho, esquentando os pés...”- dindooon- a campainha interrompe nossos planos. Um doce pra quem adivinhar quem era. Ela mesma: Gargamel. Pra quem não sabe de quem estou falando, por favor leia esse post aqui.

Lá foi Rafael atender a porta, e uma voz aflita ecoou no corredor inteiro: “-Posso assistir a novela com vocês?”- cortaram o cabo da velha. E lá vieram um milhão de explicações: “porque eu pago seis meses adiantado e eles fazem essa sacanagem comigo... porque nunca fiquei sem pagar... porque se eu perder esse capítulo... porque a Carminha vai descobrir que a Nina é a Rita...”- resultado: Gargamel sentada no sofá da sala. Fato que exigiu do Rafa mudança de planos: trazer a TV do quarto, colocar mais um par de meias, e tentar usar aquela psicologia de sala de espera do dentista (onde algo te incomoda e te constrange ao mesmo tempo). Porque sim, ela colocaria as “garrinhas de fora”.

Gargamel devidamente sentada, recusou-se a provar nosso lanche, sob pretexto de que só come comida azul- mentirinha- de que já havia jantado. Começa a novela. Na TV e na sala, ao vivo. Resulta que Gargamel desanda a falar, a comentar, a se revoltar contra as personagens, e começa a viajar no mundo do Projac, e fala tanto que uma hora eu e Rafa parecemos a audiência burra: só concordamos.

Foi uma longa refeição, eu que estou sempre brigando pro Rafa comer devagar, me surpreendi ao ver que eu havia terminado e ele seguia mastigando. Seria pra não falar, e continuar a concordar? Seria pra fazer tempo e não precisar sair da mesa e se unir a velha no sofá? Não posso julgá-lo, eu fiz o mesmo.

De repente, chegaram nossos salvadores. - Dindooon, outra vez. Nossos amigos-vizinhos-compadres. Um casal grávido. A conversa aconteceu, a cara fechada de Gargamel se abria em sorrisos de vez em quando, quando o “Jorginho” aparecia, a gente ria dos comentários dela, e ela também, a hora passava depressa, com mais gente quase conseguíamos inibir podar uma reação desarmônica da chatinha senhora. Mas veio o intervalo comercial, e com ele uma cadeia de espirros de Gargamel. –“Está gripada vizinha?”- E ela não só respondeu que sim, mas que associava esse estado gripal com um estado de depressão pelo qual estava passando. Não chegou a ser surpreendente porque Gargamel tem o perfil típico dos depressivos. Mas foi triste. A gente deu razão a ela, “claro que sim, a depressão pode baixar nossas defesas”- todo mundo concordando, todos nós tentando deixá-la mais confortável, naquela onda “ela é gente como a gente...”-não é não!

Pessoas como Gargamel não adotam a forma humana por muito tempo. Eu avisei que ela poria as garras de fora. Estávamos falando da felicidade dos nossos amigos em serem papais pela primeira vez, quando ela solta essa: “Isso é uma desgraça!”- sabe aquela hora em que todo mundo quer disfarçar, mas a cara fala? Daí ela emendou, com medo que a gente enforcasse ela: “-Mas é um presente de Deus, né...”- agora, me digam, o que fazer com essa velha? 

Nem ela se aguenta mais. Ela vai ser alvo fácil da gripe sempre. Ela vai ter que inventar um cabo cortado, no meio da noite gelada, muitas vezes mais. Ela casou, fez filhos, tem netos, todos beeeem longe... e não falo nem de distância física, porque até pra isso o Skipe dá um jeito. Eu falo da distância que as pessoas tomaram dela no campo dos sentimentos. Ela tem um prazersinho incrível de chocar com as opiniões, de enervar, de espirrar para os outros sentirem pena. 

Quando ela começou a ser assim? Quando ela pensou em afastar os demais pra viver na dependência psicológica de uma novela das nove? Quando ela achou que teria todo o tempo do mundo pra mudar e ser melhor, e ser querida, e ser amada, e não foi?

Não dá pena. Dá tristeza.


Luiza Versamore

*Obra: La Celestina de Pablo Picasso



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