Livro Fechado

 Não é culpa de ninguém que eu seja tão fechada. Ou talvez seja culpa minha. Penso que estarei perturbando ao relatar que sofri, alguma vez. A avó tenta saber, pergunta com cuidado, e dou risada no meu íntimo, porque sei que falarei uma meia verdade contida e ficará tudo bem. Ela talvez ache que sabe algo do que passei, que consegui transpor os traumas de infância, que sou bem resolvida quanto à adolescência e aos sofrimentos passados. Eu deixo. Não me perturbo por isso mais. É um sofrimento que iria perturbar pessoas que estão de bem com a vida, e daí surgiria a relatividade da culpa, e aquilo que acredito que seja algo que possa ferir. Tem coisa que tem que ficar presa, pois se sair estraga tudo.

Estive a ponto de contar que um dia também sofri como um cão sem dono- boa estrofe de música ruim... as músicas ruins estão pra nossa “dor de corno”, como o chocolate quente está para o inverno. Só que tem um inverno que dura pra sempre dentro de nós, então é melhor nem tocar na existência dele, deixá-lo congelado e amortecido.

Me dei conta de que nunca contei uma dor de amor a ninguém, pelo menos não tal qual ela foi. Os detalhes que machucaram, os fatos que feriram. Sempre sufoquei o pior. Sorri quando queria era me atirar da ponte. Mas não invejo quem consegue contar sua dor, não mesmo. Acho que tem um tom de lástima que a gente não precisa expor a todo tempo: faz você parecer que foi o único que sofreu no mundo, na vida, em todos os tempos, a maior dor do universo. Só que todo mundo já sofreu assim, sinto em dizer.

De todas as dores, a que mais me cala é a da infância. Eu tive o carinho que bastava pra uma menina pensadora, que vagava sozinha por pensamentos confusos, por adultos confusos. Um carinho de avós, grande, mas de substituição. Fui preterida muito cedo, e me senti excluída e esquecida muitas vezes. Não, vocês não irão entender, porque está tudo trancado. Não vou explicar.

O adulto que somos jamais esquecerá a criança que fomos.

 Amar se aprende, é isso? Será que é mesmo preciso que nos ensinem a amar? A não desdenhar dos sentimentos e sonhos de quem amamos? Talvez.

Somos seres imperfeitos demais para julgar a dor de alguém que a expõe. Mas respeite quem tem a sua dor recolhida, também. Quem não escandaliza os sentimentos. Existem bons motivos para que fiquem lá, num canto aonde somente eu possa ter acesso.

Um pouco de justiça no seu argumento, e talvez consiga entender que desconhece minhas mais profundas dores. Nem por isso farei disso o lema de minha vida, pois quem sou hoje, não reflete a amargura que vivi. Decidi que teria que ser doce com quem amo, como espero de quem amo, ou esperei. Teria pavor de viver nesse mundo crendo que sou uma vítima.

Mas não pense que eu esqueci.

Luiza Versamore


 “Frias vidraças dentro de mim,
Passa o inverno, mas não passa, não
Essa geada em meu coração.”
                                        Nara Leão





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