A avó queria desesperadamente que a páscoa tivesse
outro sentido. Naquele ano, outra vez, lhe seria quase impossível. Quase. A
netinha era boba, acreditava em coelho, e, na sua cabeça ele trazia ovos da
Fábrica de Chocolate do filme* mesmo, pois acreditar que ele os poria? Ora,
coisa sem cabimento! E a avó queria preservar aquela inocência de não saber.
Aquela noite eu não iria dormir direito. A ansiedade
batia forte em meu coração achocolatado. Eram propagandas mil ao redor, na TV e
também no Armazém do seu João. No jardim de infância colávamos algodão no rabo
do coelhinho de cartolina. Foi então que quase abri os olhos. Senti o barulho
do coelho. Entreabri um olho, para ele não perceber. Estava quase amanhecendo.
Não pode ser!
Vovó estava agachada, desenhando com giz branco
pequenas pegadas no chão de parquê. Pegadas de coelho. Eu sabia! Toda aquela
história pra boi dormir... E no fim vovó é quem organizava a Páscoa também!
Fingi que estava em bom sono, até ela sair do quarto. Havia uma pequena
indignação dentro de mim. Por outro lado, gostava da brincadeira... vou achar
os chocolates, ah se vou!
No ano anterior haviam sido “deixados” dentro da
lareira, esse ano os encontrei no cesto de vime, coberto com um cobertor azul.
Não falei nada, durante todo o dia. Primos chegaram, contando dos seus coelhos.
Não mencionei o fato. Queria contar primeiro à vovó, dizer que já sabia.
Só que havia também, uma cerca. Uma cerca de arame,
nos fundos de casa, que estava furada. Tinha um rombo circular por onde minha
amiga Aline, mais magrinha ainda do que eu, saía pra gente brincar de casinha,
passando ao pátio de nossa casa.
Vovó viu Aline na cerca, estranhamente triste. Olhava
para a algazarra armada no pátio, e pra nossos beiços lambuzados e mãos
manchadas do doce delicioso. Percebi o olhar de vovó, uma perturbação surgir em seu rosto, afinal, havia esquecido de Aline, a menina da
casinha de madeira, dos pés descalços, das tardes em que trocávamos todos os
piolhos brincando de se balançar no balanço de madeira que vô Ary havia pendurado
no pé de limoeiro, e então, eu a surpreendi.
“Eu não vou contar que são os avós que dão o chocolate
da páscoa!”- Ela piscou tentando compreender, enquanto eu sussurrava em seu
ouvido. Então vovó me perguntou o que eu achava de dar alguns chocolates meus
para Aline. A menina da casa de madeira, de chão batido. Dos
dentinhos da frente, que faltavam. Da ilusão, que talvez não tivesse mais.
Foi numa tigela redonda de margarina, que eu nem sei
se hoje em dia ainda existe, que eu depositei bombons e balas que havia ganho,
e vovó incrementou com um fio de barbante em dois furinhos feitos no pote, para
imitar uma cestinha.
Aline sorriu. Eu falei para ela aquilo que vovó pediu-
que o coelho havia se enganado de endereço, e entreguei-lhe o presente.
E, então, eu e vó Maria tínhamos apenas, mais um
segredo, e o sentido da páscoa, virou outro dentro da gente.
Luiza Versamore
*Se refere ao filme- A Fantática Fábrica de Chocolate: http://pt.wikipedia.org/wiki/Charlie_and_the_Chocolate_Factory
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